Quando alguém diz, por exemplo, "João traiu Renata", a primeira coisa que me vem à cabeça é que João espalhou um segredo cabeludo que Renata havia lhe confiado, ou então que João entregou Renata para a polícia, ou ainda que João fugiu com todo o dinheiro que Renata havia economizado, que crápula. Nunca penso que João transou com outra mulher.
Trair pressupõe que algo foi feito contra alguém. E sexo não é algo que seja feito contra uma terceira pessoa. Sexo é sempre a favor, sempre pró, e sempre egoísta " não diz respeito a quem ficou do lado de fora do quarto. Faz-se sexo para dar e receber prazer, e não para prejudicar quem quer que seja. Traição é uma palavra dura demais para ser usada como sinônimo de infidelidade e adultério.
A palavra adultério é até romântica, remete à encontros clandestinos, beijos roubados, vidas secretas, roteiros de cinema, letras de samba. O adúltero " apesar de ter que carregar este palavrão nas costas " é na verdade um alegre.
Infidelidade já é uma palavra mais burocrática, boa para ser usada em tribunais, alegar quebra de contrato. É palavra comprida e possui um certo status, parece coisa de estelionatário graúdo, gente com conta em paraíso fiscal .Pensando bem, conta em paraíso fiscal é uma metáfora que se aplica perfeitamente a romances paralelos. Mas estelionato é crime, e infidelidade não é. O infiel é um inofensivo, vende fácil seus carros usados.
Os infiéis não metem medo, os adúlteros possuem um charme boêmio, então, na falta de uma palavra mais intimidante, apela-se para "traidores", a fim de arrancar deles alguma culpa, remorso, vergonha. Mas que ninguém se engane: a palavra traição está combinando cada vez menos com a realidade sexual vigente. Ninguém está batendo palmas aqui para a poligamia. Estou apenas refletindo sobre a adequação e a inadequação de certos vocábulos. Traição? Convém enfrentar os revezes amorosos sem mexicanizar demais a cena.
No início de todo romance, homens e mulheres se satisfazem plenamente um com o outro, mas com o passar do tempo a relação passa a satisfazer apenas parcialmente, e parcialmente pode ser mais que suficiente quando inclui amizade, cumplicidade, diversão, leveza. Porém, a parte que começa a faltar "a sedução " deixa o campo aberto para novas experiências, que podem acontecer ou não. Nada disso tem a ver com desamor. Pode-se amar alguém e sucumbir a uma aventura. Não estou dizendo nenhuma novidade, estou? Há algum inocente no recinto?
Toda traição pega você desprevenido. A infidelidade, ao contrário, é sempre uma possibilidade, mesmo quando parece improvável. E não, não há nenhum inocente no recinto.
Martha Medeiros
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Para saber quem somos, basta que se observe o que fizemos da nossa vida.
Quem é você? Do que gosta? Em que acredita? O que deseja? Dia e noite somos questionados, e as respostas costumam ser inteligentes, espirituosas e decentes. Tudo para causar a melhor impressão aos nossos inquisidores. Ora, quem sou eu. Sou do bem, sou honesto, sou perseverante, sou bem-humorado, sou aberto - não costumamos economizar atributos quando se trata da nossa própria descrição. Do que gostamos? De coisas belas. No que acreditamos? Em dias melhores. O que desejamos? A paz universal.
Enquanto isso, o demônio dentro de nós revira o estômago e faz cara de nojo. É muita santidade para um pobre-diabo, ninguém é tão imaculado assim.
A despeito do nosso inegável talento como divulgadores de nós mesmos e da nossa falta de modéstia ao descrever nosso perfil no Orkut, a verdade é que o que dizemos não tem tanta importância. Para saber quem somos, basta que se observe o que fizemos da nossa vida. Os fatos revelam tudo, as atitudes confirmam. O que você diz - com todo o respeito - é apenas o que você diz.
Entre a data do nosso nascimento e a desconhecida data da nossa morte, acreditamos ainda estar no meio do percurso, então seguimos nos anunciando como bons partidos, incrementamos nossas façanhas, abusamos da retórica como se ela fosse uma espécie de photoshop que pudesse sumir com nossos defeitos. Mas é na reta final que nosso passado nos calará e responderá por nós.
Quantos amigos você manteve.
Em que consiste sua trajetória amorosa.
Como educou seus filhos.
Quanto houve de alegria no seu cotidiano.
Qual o grau de intimidade e confiança que preservou com seus pais.
Se ficou devendo dinheiro.
Como lidou com tentativas de corrupção.
Em que circunstâncias mentiu.
Como tratou empregados, balconistas, porteiros, garçons.
Que impressão causou nos outros - não naqueles que o conheceram por cinco dias, mas com quem conviveu por 20 anos ou mais.
Quantas pessoas magoou na vida. Quantas vezes pediu perdão.
Quem vai sentir sua falta. Pra valer, vamos lá.
Podemos maquiar algumas respostas ou podemos silenciar sobre o que não queremos que venha à tona. Inútil. A soma dos nossos dias assinará este inventário. Fará um levantamento honesto. Cazuza já nos cutucava: suas idéias correspondem aos fatos? De novo: o que a gente diz é apenas o que a gente diz. Lá no finalzinho, a vida que construímos é que se revelará o mais eficiente detector de nossas mentiras.
Martha Medeiros
Enquanto isso, o demônio dentro de nós revira o estômago e faz cara de nojo. É muita santidade para um pobre-diabo, ninguém é tão imaculado assim.
A despeito do nosso inegável talento como divulgadores de nós mesmos e da nossa falta de modéstia ao descrever nosso perfil no Orkut, a verdade é que o que dizemos não tem tanta importância. Para saber quem somos, basta que se observe o que fizemos da nossa vida. Os fatos revelam tudo, as atitudes confirmam. O que você diz - com todo o respeito - é apenas o que você diz.
Entre a data do nosso nascimento e a desconhecida data da nossa morte, acreditamos ainda estar no meio do percurso, então seguimos nos anunciando como bons partidos, incrementamos nossas façanhas, abusamos da retórica como se ela fosse uma espécie de photoshop que pudesse sumir com nossos defeitos. Mas é na reta final que nosso passado nos calará e responderá por nós.
Quantos amigos você manteve.
Em que consiste sua trajetória amorosa.
Como educou seus filhos.
Quanto houve de alegria no seu cotidiano.
Qual o grau de intimidade e confiança que preservou com seus pais.
Se ficou devendo dinheiro.
Como lidou com tentativas de corrupção.
Em que circunstâncias mentiu.
Como tratou empregados, balconistas, porteiros, garçons.
Que impressão causou nos outros - não naqueles que o conheceram por cinco dias, mas com quem conviveu por 20 anos ou mais.
Quantas pessoas magoou na vida. Quantas vezes pediu perdão.
Quem vai sentir sua falta. Pra valer, vamos lá.
Podemos maquiar algumas respostas ou podemos silenciar sobre o que não queremos que venha à tona. Inútil. A soma dos nossos dias assinará este inventário. Fará um levantamento honesto. Cazuza já nos cutucava: suas idéias correspondem aos fatos? De novo: o que a gente diz é apenas o que a gente diz. Lá no finalzinho, a vida que construímos é que se revelará o mais eficiente detector de nossas mentiras.
Martha Medeiros
Assinar:
Postagens (Atom)